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A divisão de banheiros por sexo no ambiente de trabalho

Embora a diferenciação entre “sexo” e “gênero” remonte a década de 1960[1][1] Informação retirada do Nexo Jornal, em matéria publicada no dia 05/11/2015., tais expressões ainda são compreendidas pela maioria das pessoas como sinônimas.

O legislador brasileiro também não contribui para a questão. Em regra, as leis vedam taxativamente a discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo, sendo omissas quanto ao gênero. São exemplos o art. 223-C[2][2] A Medida Provisória nº 808/2017 corrigiu essa falha incluindo o gênero dentre os bens da pessoa natural juridicamente protegidos. Porém, a citada MP teve a sua vigência encerrada em 23/04/2018, sem ter sido convertida em lei. Isso acarretou a volta da redação original do art. 223-C segundo a Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).
Art. 223-C da CLT: A etnia, a idade, a nacionalidade, a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, o gênero, a orientação sexual, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa natural.
da CLT e art. 1º da Lei nº 9.029/95[3][3] A Lei nº 9.029/95 dispõe sobre práticas discriminatórias no tocante ao acesso e manutenção da relação de trabalho e dá outras providências.:

Art. 223-C da CLT: A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.

Art. 1º da Lei nº 9.029/95: É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

Todavia, dada a intensificação das políticas de inclusão social das minorias, não é mais possível ignorar o conceito de identidade de gênero e suas implicações no direito, especialmente no ambiente laboral.

É nesse contexto que se pretende discutir o uso do banheiro pelo empregado transexual e as possíveis consequências do tratamento discriminatório pelo empregador e seus prepostos.

Delimitação Conceitual

Para a correta compreensão do tema, é fundamental conhecer o significado de algumas expressões:

  • Sexo: está ligado à condição biológica da pessoa, ou seja, refere-se a sua qualificação conforme o órgão sexual (mulher/homem).
  • Gênero: é como a pessoa se reconhece e se expressa socialmente, o que pode coincidir com o sexo ou não.
  • Orientação Sexual: abrange a sexualidade da pessoa; por quem ela sente atração afetivo-sexual.
  • Transexual: é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao seu sexo biológico, independente de ter feito cirurgia de mudança de sexo.

Do exposto, considerando a contratação de empregado transexual, do sexo masculino, é possível que ele utilize o banheiro feminino?

O que diz a lei e qual deve ser a conduta do empregador

Como se sabe, não basta fornecer banheiro aos empregados. A NR-24 do antigo MTE[4][4] Através da Medida Provisória nº 870/2019, o governo Bolsonaro promoveu a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego, cujas atribuições foram absorvidas pelos Ministérios da Justiça e Segurança Pública, da Economia e da Cidadania. Mais informações, consultar post publicado no dia 06/04/2019., igualmente, exige que as instalações sanitárias sejam mantidas em estado de asseio e higiene, bem como atendam às dimensões mínimas e aos padrões pré-estabelecidos.

Paralelamente, os itens 24.1.2 e 24.1.2.1 da Norma Regulamentadora determinam a disponibilização de 01 banheiro a cada 20 empregados e a separação dos sanitários por sexo.

Item 24.1.2 da NR-24 do MTE: As áreas destinadas aos sanitários deverão atender às dimensões mínimas essenciais. O órgão regional competente em Segurança e Medicina do Trabalho poderá, à vista de perícia local, exigir alterações de metragem que atendam ao mínimo de conforto exigível. É considerada satisfatória a metragem de 1 metro quadrado, para cada sanitário, por 20 operários em atividade.

Item 24.1.2.1 da NR-24 do MTE: As instalações sanitárias deverão ser separadas por sexo.

Veja que a referida norma não menciona o termo “gênero”, muito menos define a quantidade de banheiros[5][5] Para evitar dúvidas, neste post, a palavra banheiro equivale a instalação sanitária. que devem ser destinados ao sexo feminino e masculino. Diante dessa omissão, recomenda-se sempre avaliar a realidade da empresa para o cumprimento da NR-24.

Assim, por exemplo, considerando uma empresa com 100 empregados, é obrigatório o fornecimento de, no mínimo, 05 banheiros. Se, desses 100 trabalhadores, 80 forem do sexo masculino, o razoável seria reservar a eles 03 banheiros e o restante para o sexo feminino.

Na situação supracitada, não há tratamento discriminatório contra as empregadas, pois elas representam 1/5 do universo de obreiros, justificando o número menor de sanitários.

Além de cumprir a lei, ao fazer qualquer distinção, o empregador deve sempre se preocupar com a razoabilidade e proporcionalidade da medida, o que minimiza o risco de condutas equivocadas e, por consequência, passivos trabalhistas.

Igual raciocínio precisa ser aplicado ao uso de banheiro por empregado transexual.

Para a jurisprudência[6][6] Argumentos apresentados pelo juiz, Leonardo Tibo Barbosa Lima, da Vara do Trabalho de Formiga/MG em sua sentença. A discussão do caso está disponível no Notícias Jurídicas Especial do TRT da 3ª Região, com data de 05/03/2018., ao lado do sexo – condição biológica, o gênero – condição psíquica – compõe a personalidade do indivíduo, devendo ambos serem protegidos pelo Estado e respeitados pela sociedade e pelo empregador.

Quando o sexo não coincide com o gênero, a definição deste se dá pela afirmação pessoal, o que determina a forma como a sociedade deve tratar o indivíduo.

Portanto, a despeito do sexo masculino, se o empregado transexual se reconhece pelo gênero feminino, é desse modo que ele deve ser tratado, inclusive ser chamado e identificado por seu nome social (diferente do nome de batismo).

Trata-se de interpretação que melhor se harmoniza com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CR/88) e com o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de promover o bem de todos sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV da CR/88).

E ainda que o art. 1º da Lei nº 9.029/95 não tenha mencionado o gênero de maneira taxativa, ao incluir a expressão “entre outros”, ela também proíbe esse tipo de preconceito:

Art. 1º da Lei nº 9.029/95: É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

Do exposto, tem o empregado transexual direito de usar o banheiro feminino, se assim o desejar, não obstante o seu sexo masculino.

Em caso de negativa, o empregado pode considerar rescindido, de forma indireta, o seu contrato de trabalho devido à falta do empregador, sem prejuízo da indenização por danos morais (art. 5º, V e X da CR/88 c/c arts. 186, 927 e 932, III do Código Civil).

Sobre o tema, é digno de nota o RE nº 845.779[7][7] O referido Recurso Extraordinário teve a sua repercussão geral reconhecida, por maioria, pelo STF (Tema nº 778). Na oportunidade, ficaram vencidos os Min. Marco Aurélio e Min. Teori Zavascki. em que se aborda a possibilidade de se tratar socialmente uma pessoa de maneira diversa ao sexo com o qual ela se identifica e se apresenta no ambiente público.

No processo, a discussão envolve o caso de um transexual do sexo masculino, que foi impedido por funcionários de um shopping de usar o banheiro feminino. Pela negativa e abordagem vexatória, ele propôs ação judicial pleiteando indenização por danos morais.

Até o presente momento, o relator, Min. Roberto Barroso, e o Min. Edson Fachin votaram pela procedência do recurso.

Para o relator, o caso envolve questão que vai além do direito dos transexuais de utilizarem banheiros e vestiários públicos (o que inclui o ambiente de trabalho). Ou seja, abarca o “direito de tais grupos de serem tratados, denominados e de acessarem ou conviverem em espaços sociais, conforme o gênero com o qual se identificam”.

Segundo o Ministro Barroso, como desdobramento do princípio da dignidade está a igualdade como reconhecimento, no sentido de que “todos os indivíduos têm igual valor e por isso merecem o mesmo respeito e consideração”.

Desse modo, é essencial combater todas as práticas culturais que inferiorizam e estigmatizam certos grupos sociais, diminuindo ou negando-lhes o seu valor intrínseco como seres humanos.

Como se não bastasse, continua o Ministro, “cada indivíduo tem o direito de buscar, à sua maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. Viver segundo seus próprios valores, interesses e desejos”. Assim, não respeitar a identidade de gênero da pessoa é privá-la de uma das dimensões que dá sentido a sua existência.

Quanto ao constrangimento das demais mulheres ao compartilharem o banheiro com transexual, destacou o relator:

Cabe por fim, dentro desse tópico, fazer a ponderação entre o direito de uso de banheiro feminino de acesso ao público por parte de transexual feminina e o direito de privacidade das mulheres (cisgênero). Note-se que o suposto constrangimento às demais mulheres seria limitado, tendo em vista que as situações mais íntimas ocorrem em cabines privativas, de acesso reservado a uma única pessoa. De todo modo, a mera presença de transexual feminina em áreas comuns de banheiro feminino, ainda que gere algum desconforto, não é comparável àquele suportado pela transexual em um banheiro masculino.

Portanto, em face da leve restrição do direito à privacidade e a limitação intensa aos direitos à igualdade e liberdade, a “solução constitucionalmente adequada consiste no reconhecimento do direito dos transexuais serem socialmente tratados de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive no que se refere à utilização de banheiros de acesso público”.

Finalmente, ainda que identidades de gênero fora do padrão gerem certa estranheza, o Ministro Barroso ressaltou que a democracia abarca uma dimensão substantiva, o que envolve a proteção dos direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias, como é o caso em questão.

Obras consultadas