Do ponto de vista processual, o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica é novidade no direito brasileiro.
Tal procedimento foi introduzido no Código de Processo Civil de 2015 (arts. 133 a 137 da Lei nº 13.105) e depois acolhido, com algumas adaptações, pela Lei nº 13.467/2017 – Reforma Trabalhista no art. 855-A da CLT. Até então, existiam apenas regras[1][1] Como exemplo, cita-se o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e art. 50 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) de direito material que admitiam a desconsideração da personalidade da sociedade empresária.
A finalidade do instituto é garantir a satisfação das obrigações contraídas pela sociedade através da expropriação do patrimônio particular de seus sócios ou administradores, haja vista o abuso[2][2] Para o Código Civil, fica configurado o abuso quando há o desvio de finalidade da sociedade empresária ou resta evidente a confusão patrimonial entre os bens da empresa e de seus sócios. de sua personalidade jurídica, o excesso de poder, a infração da lei, a existência de ato ilícito ou violação dos estatutos e contrato social, além da falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica devido a má administração.
Com a evolução do instituto, passou-se a admitir também a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Sobre o tema, explicam Alexandre Freire e Leonardo de Albuquerque (2016, p. 205):
A desconsideração inversa da personalidade jurídica consiste no afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio. A fraude que se visa coibir aqui é, em essência, o desvio de bens pelo devedor (que visa se furtar do cumprimento de obrigações pessoais), que os transfere para o patrimônio de pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Neste particular, o controle no processo decisório da sociedade, fundação ou associação se mostra fundamental para a eficácia do desvio promovido pelo sócio.
Enquanto no processo civil o incidente é tratado como modalidade de intervenção de terceiros[3][3] Como se sabe, a figura do sócio ou administrador não se confunde com a pessoa jurídica sob sua direção. Assim, numa ação judicial movida contra a sociedade empresária, o sócio é tido como terceiro, ou seja, pessoa estranha àquela relação processual. Se a desconsideração da personalidade jurídica é deferida pelo juiz, o sócio deixa de ser terceiro e passa a figurar como parte no processo ao lado da empresa., no processo do trabalho, a doutrina e jurisprudência apresentam visão diferente. É que no ramo justrabalhista vigora o princípio da despersonalização do empregador (arts. 2º, §2º, 10, 448 e 449 da CLT).
Segundo esse princípio, tanto o contrato de trabalho como o empregado vinculam-se à empresa, independente do seu atual proprietário. Assim, qualquer modificação na estrutura jurídica da sociedade não afeta as relações já existentes. E havendo obrigações decorrentes da relação de emprego, serão responsáveis todos aqueles que, de alguma forma, se beneficiaram dos serviços prestados (LEITE, 2018, p. 602-604).
Nesse sentido, o princípio da despersonalização está intimamente ligado ao da desconsideração da personalidade jurídica. Isso se explica pelo caráter tutelar do direito do trabalho, que protege a parte hipossuficiente da relação (o empregado), além do caráter alimentar das verbas trabalhistas.
Portanto, constatando o juiz a insuficiência de patrimônio da pessoa jurídica (ou dificuldade de acessá-lo), é redirecionada a execução contra os seus sócios, a fim de garantir a satisfação do crédito alimentar do trabalhador.
Como regra, na execução trabalhista, dispensa-se a comprovação do abuso da personalidade e das demais hipóteses supracitadas para a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade (SCHIAVI, 2018, p. 1.151). O mero descumprimento da obrigação já é interpretado como má administração da empresa para responsabilizar diretamente o sócio ou administrador.
Se, por um lado, tal entendimento favorece a celeridade e o potencial sucesso da execução, por outro, não são raros os casos de abusos cometidos pelo Poder Judiciário contra proprietários e administradores de empresas. Aqui, não se nega a natureza privilegiada do crédito trabalhista, nem o caráter protetivo do direito do trabalho, mas alguns limites são necessários.
O Provimento nº 1 da CGJT, publicado em 08/02/2019, vem garantir exatamente isso, embora haja vozes que se posicionam contra o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica do art. 855-A da CLT, dada a simplicidade e rapidez da execução trabalhista.
Art. 855-A da CLT: Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
§1º: Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:
I- na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do §1º do art. 893 desta Consolidação;
II- na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo;
III- cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal.
§2º: A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
Art. 133 do NCPC: O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§1º: O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§2º: Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Art. 134 do NCPC: O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
§1º: A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
§2º: Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§3º: A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do §2º.
§4º: O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135 do NCPC: Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Art. 136 do NCPC: Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.
Parágrafo único: Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.
Art. 137 do NCPC: Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.
O objetivo do Provimento nº 1/2019 da CGJT é estabelecer uma padronização mínima para o recebimento e processamento do Incidente na Justiça do Trabalho, o que garante segurança às partes e limita os poderes do magistrado.
Em linhas gerais, o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica não configura uma ação autônoma. Ele deve ser processado nos autos do processo principal (PJe), gerando a sua suspensão até a decisão. E pode ser requerido[4][4] Nos termos do art. 878 da CLT, a execução deve ser promovida pelas partes, podendo ser impulsionada de ofício pelo juiz apenas quando a parte (credor) não estiver representada por advogado. A mesma regra aplica-se ao Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. em qualquer fase processual[5][5] Quando a desconsideração da personalidade jurídica é requerida na petição inicial, dispensa-se a formação do Incidente, pois o sócio ou administrador será citado para contestar a ação como parte. Nesse hipótese, haverá um litisconsórcio passivo entre a empresa e seu representante legal (art. 134, §2º do NCPC)., demonstrando a parte o cumprimento dos requisitos legais.
Ao contrário do que defendem alguns autores, a prova para o deferimento da desconsideração da personalidade não representa empecilho ao empregado, pois a qualquer momento o juiz pode inverter o ônus probatório, atribuindo-lhe ao empregador (art. 373, §§1º e 2º do NCPC e art. 3º, VII da IN nº 39/2016 do TST[6][6] A título de nota, foi distribuída em 05/05/2016 Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 5.516), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), contra a IN nº 39/2016 do TST. Na ação, pede a ANAMATRA a nulidade da Instrução Normativa por vício formal e material de inconstitucionalidade. Desde 14/09/2016, o processo está concluso ao relator Min. Ricardo Lewandowski. – distribuição dinâmica do ônus da prova).
Também não se observa risco à efetividade da execução, pela suspensão temporária do processo, porque ao magistrado é dada a prerrogativa de conceder tutela de urgência de natureza cautelar[7][7] Segundo o art. 300 do NCPC, aplicável ao processo do trabalho, “a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Dentre as medidas disponíveis estão: o arresto, o sequestro de bens e o registro de protesto contra a alienação de bem, etc (cf. art. 813 a 825 do CPC/73). para evitar a possível dilapidação patrimonial pelo devedor, conforme dispõe o art. 2º do Provimento da CGJT e art. 855-A, §2º da CLT.
Logo, com respeito à posição diversa, deve ser festejada a edição do Provimento nº 1/2019 da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho.
Obras consultadas
- LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 16. ed. 2 tiragem. de acordo com a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467, de 13-7-2017). São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 601-615.
- SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 13. ed. de acordo com o novo CPC, Reforma Trabalhista – Lei n. 13.467/2017 e a MP n. 808/2017. São Paulo: LTr, 2018, p. 1.148-1.161.
- STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle, et. al. (org.). Comentários ao Código de Processo Civil. de acordo com a Lei n. 13.256/2016. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 204-209.