O fornecimento de alimentação pelo empregador foi outra alteração da Medida Provisória publicada no dia 12/11/2019[1][1] Cumpre ressaltar, por força do art. 53, §1º, I da MP nº 905/2019, que a mudança no art. 457 da CLT somente produzirá efeitos quando atestada, em ato do Ministério da Economia, a sua compatibilidade com as metas de resultados fiscais no anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias e o atendimento à Lei de Responsabilidade Fiscal – LC nº 101/2000.. Todavia, ao contrário do que possa parecer, a mudança na redação dos arts. 457, §5º e 458, caput da CLT não promoveu a completa exclusão da vantagem como salário em face do trabalhador.
É que o ordenamento jurídico, nele incluído o ramo juslaboral, funciona como um sistema, devendo ser interpretado pelo conjunto de suas normas, sob pena de conclusões equivocadas e inevitável criação de passivo. Trata-se de cuidado essencial ainda mais diante da política de “modernização”[2][2] Sob o pretexto de atualizar a legislação, na prática, a modernização em andamento está gerando real perda de direitos aos trabalhadores, sem impulsionar a economia e nem criar empregos de qualidade. Daí o porquê do termo ter sido colocado entre aspas. Como se sabe, o direito do trabalho não é o único fator que impacta o custo da mão-de-obra no Brasil, muito menos o principal representado pela alta carga tributária sobre a folha de pagamento. das relações trabalhistas do atual governo.
Como amplamente divulgado e discutido, a falta de técnica legislativa aliada ao caráter autoritário das recentes modificações (através de MP’s sem a discussão com a sociedade e principais setores atingidos) está criando um ambiente de insegurança e favorecendo a judicialização de temas em detrimento da reação econômica que se pretende alcançar.
Neste post, além de abordar a natureza jurídica da alimentação dada ao empregado (seja na sua forma “in natura” ou por meio de documentos de legitimação – vales, tíquetes ou cartões), a tarefa será oferecer uma análise segura, ao menos até a conversão da medida em lei[3][3] Considerando a prorrogação por mais 60 dias da vigência da MP nº 905, a data limite para a sua votação e conversão em lei é dia 20/04/2020. ou o posicionamento da jurisprudência sobre o assunto.
Afinal, o que mudou com a MP nº 905?
A Medida Provisória sob análise aprofunda a mudança promovida pela Lei nº 13.467/2017 no art. 457, §2º da CLT, que havia retirado a natureza salarial do auxílio-alimentação concedido de maneira habitual pelo empregador, vedado o seu pagamento em dinheiro:
Art. 457 da CLT: Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.
(…)
§2º: As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.
(…)
§5º: O fornecimento de alimentação, seja in natura ou seja por meio de documentos de legitimação, tais como tíquetes, vales, cupons, cheques, cartões eletrônicos destinados à aquisição de refeições ou de gêneros alimentícios, não possui natureza salarial e nem é tributável para efeito da contribuição previdenciária e dos demais tributos incidentes sobre a folha de salários e tampouco integra a base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa física.
Naquela oportunidade, o legislador determinou a não incorporação do benefício ao contrato e nem a incidência de qualquer encargo trabalhista ou previdenciário. Claramente, o fim foi estimular o fornecimento de alimentação pelas empresas e, com isso, reforçar a saúde dos empregados e a prevenção de doenças ocupacionais.
Já a MP nº 905/2019, no §5º do art. 457 da CLT, fixou que a alimentação “in natura” e aquela dada através de documentos de legitimação também não seriam consideradas salário e não integrariam a base de cálculo do imposto de renda da pessoa física. Paralelamente, a medida suprimiu o termo “alimentação” do caput do art. 458 da CLT[4][4] A título de nota, veja como era a redação anterior do caput do art. 458 da CLT: “Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações ‘in natura’ que a empresa, por fôrça do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas”.:
Art. 458 da CLT: Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a habitação, o vestuário ou outras prestações in natura que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado, e, em nenhuma hipótese, será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas.
(…)
A rápida leitura dos dispositivos citados pode induzir a conclusão de que a alimentação em qualquer hipótese não será mais enquadrada como salário, afastando o risco de reflexos nas demais parcelas oriundas do contrato. É preciso, contudo, ter cuidado com tal interpretação[5][5] Ressalta-se que, na exposição de motivos da MP nº 905/2019, não há qualquer explicação quanto às alterações dos arts. 457, §5º e 458, caput da CLT., pois o conjunto das normas que tratam o tema parece indicar resultado diverso.
Em primeiro lugar, haja vista a manutenção da redação do §3º do art. 458 da CLT, que estabelece percentuais máximos[6][6] O objetivo é evitar que o salário do empregado seja pago integralmente com utilidades. Para tanto, consultar os arts. 81, 82 e 458, §§1º e 3º da CLT. para que a habitação (25%) e a alimentação (20%) sejam concedidas como salário-utilidade pelo empregador. Ora, se a MP excluiu o caráter salarial da alimentação “in natura”, porque ao mesmo tempo ela não modificou a referida previsão?
Ainda que possa ser considerado um “descuido” do Poder Executivo, o fato é que a Medida Provisória, nesse ponto, trouxe incerteza e exige cautela do intérprete. Não é demais sublinhar que a doutrina e a jurisprudência trabalhistas possuem posição[7][7] No mesmo sentido, o Precedente Administrativo nº 34 do antigo MTE: FGTS. CESTA BÁSICA. FALTA DE RECOLHIMENTO DO PERCENTUAL DE 8% SOBRE PARTE DA REMUNERAÇÃO DEVIDA. O valor pago pelo empregador ao empregado a título de cesta básica ou outro fornecimento de alimentação realizado à margem do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT deve compor a base de cálculo do FGTS, pois se trata de salário in natura. firme sobre a matéria:
SÚMULA Nº 241 do TST: SALÁRIO-UTILIDADE. ALIMENTAÇÃO (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. O vale para refeição, fornecido por força do contrato de trabalho, tem caráter salarial, integrando a remuneração do empregado, para todos os efeitos legais.
OJ Nº 133 DA SDI-I DO TST: AJUDA ALIMENTAÇÃO. PAT. LEI Nº 6.321/76. NÃO INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO (inserida em 27.11.1998). A ajuda alimentação fornecida por empresa participante do programa de alimentação ao trabalhador, instituído pela Lei nº 6.321/76, não tem caráter salarial. Portanto, não integra o salário para nenhum efeito legal.
Como se não bastasse, a MP nº 905/2019 não revogou o art. 28, §9º, “c” da Lei nº 8.212/91. Logo, para todos os efeitos legais, permanece integrando o salário de contribuição do INSS a parcela “in natura” dada ao empregado, salvo se a empresa for inscrita no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), na forma da Lei nº 6.321/76 e do Decreto nº 05/91.
Observe que a Medida Provisória não promoveu qualquer alteração no PAT. O programa, além de se manter em vigor, confere às empresas participantes benefício fiscal no tocante ao imposto de renda (art. 1º da Lei nº 6.321/76).
Nesse sentido, a menos que exista norma coletiva obrigando o fornecimento de alimentação (independente da modalidade) e afastando a sua natureza salarial, não se recomenda a concessão do benefício de maneira direta sem que a empresa participe do PAT e obedeça todas as suas regras.
Tal como restou demonstrado, a despeito das alterações promovidas pela Medida Provisória, é difícil dizer com segurança que o auxílio-alimentação, dado por força do contrato de trabalho, não será considerado salário em eventual reclamatória. A cautela, portanto, orienta aguardar o aprofundamento das discussões.